ssa rápida sucessão de conceitos, até
agora expostos; por alto, aconteceu em hora trágica para o mundo e move-se sobre o fundo apocalíptico da
maior tempestade jamais conhecida pela História. Este livro, que é sofrimento, não poderia nascer senão em
meio à grande dor de que suporta o peso e sintetiza o esforço. Iniciei o escrito em fins de março de 1944 e
continuei-o ininterruptamente até o capitulo precedente, terminado nos começos de junho, quando a guerra,
progredindo na Itália em direção ao norte, atingiu e ultrapassou Roma. Logo depois aconteceu na França o
desembarque do Atlântico. A primeira parte do volume escrevi-a, pois, nos fins daquele inverno pleno de
expectativa em que o "front" italiano permaneceu estacionário em Cassino, e, não tendo o desembarque das
Nações Unidas em Anzio atingido proporções decisivas, em toda parte se esperava algum grande acontecimento
resolutivo. No início deste capítulo o grande incêndio europeu reacende-se furioso e o terrível rolo
compressor da guerra põe-se em movimento também na Itália, para avançar em direção ao Norte através das
províncias do Centro, semeando também nestas o extermínio. Este manuscrito, bem assim a sua continuação,
nele implícita, foram salvos graças apenas a milagre insistente e prolongado, isto é, por uma combinação de
impulsos. e movimentos de tal modo inteligentes e dotados de previsão, tão decididamente guiados e com tal
tenacidade mantidos na mesma direção que justificava a presunção de por detrás delas estarem presentes um
conceito e uma vontade diretivos e excluía a hipótese do acaso. A continuação do pensamento deste volume,
neste ponto, é retomada nos fins de 1944, na devastada região umbro-toscana, depois de passado o ciclone da
guerra, isto é, depois de período de esforço físico e tensão nervosa verdadeiramente excepcionais. Mas o
espirito, sempre vigilante, tudo observara, julgara, registrara.
Narremos agora alguns episódios da guerra, não por motivo de
sua gravidade e importância exterior, que muitos terão experimentado de modo bem diferente, mas por causa
do sentido interior com que foram vividos e pelo significado universal que podem assumir, vistos assim em
profundidade. Analisando, assim, esses casos humildes, até no seu sentido mais oculto, colocamo-nos diante
dos grandes problemas da vida; aprofundando o olhar até às raízes mesmas da realidade, damo-nos conta da
gênese dos acontecimentos. O pequeno fato individual, de superfície, adquire assim ressonâncias universais.
Veremos, então, aflorar no fato exterior aquela misteriosa realidade do imponderável que se esconde
profundamente; esse fato, mais do que em sua aparência concreta, mostrar-se-nos-á no funcionamento dos
princípios que o regem, das forças que o movimentam, isto é, na sua mais verdadeira realidade interior,
aquela que, em todo acontecimento, quase sempre nos escapa à observação. Assim, observando profundamente, o
longínquo e fugitivo imponderável é trazido aos primeiros planos como figura central e, arrebatado às suas
misteriosas profundidades, obrigado a revelar-se, mostrando o mecanismo da orientação interior impressa nos
fatos exteriores. Veremos, desse modo, o Deus recôndito, que se esconde de nós no superconcebível,
aproximar-se em plena luz, vivo, presente na ação. Os episódios reduzem-se aqui à sua essência de
desenvolvimento de forças cósmicas dominadas pela vontade da Lei e pela inteligência de seus princípios.
Deus resplandece no fundo desses contrastes violentos. O bem e o mal se defrontam, eterna substância das
coisas.
Era de madrugada, esplêndida madrugada de junho. Por um
atalho que subia ao longo de uma torrente apertada entre os montes, um homem fugia: do homem, da cidade, da
civilização destruidora. Já no limite do esforço que suas forças de pobre sexagenário lhe permitiam,
carregava o indispensável, apanhado às pressas ao deixar a casa. Seguia-o a mulher, também carregada de
coisas, e a filha com a criança no colo. No encanto da pura madrugada estival, a fuga era triste, plena de
terror. Tinham sido violentamente arrancados do ninho. Sobre as casas vizinhas, na cidade, aviões haviam
lançado bombas, semeando a morte e a ruína. Ribombos terríveis e abalo de terremoto, estilhaçar de vidraças
e chuva de pedras; depois, por toda parte fumaça escura e densa. A morte por esmagamento e, vizinho, seu
hálito ardente; o terror. Desse modo fugiam, sem saber para onde, por instinto de animal perseguido,
daqueles golpes terríveis que poderiam cair-lhes sobre a cabeça. Não havia abrigos antiaéreos. Fugiam
desesperadamente, no paroxismo de esforço nervoso. Tudo em redor, no campo, em todas as criaturas, na erva,
na água, no ar, o eterno sorriso de Deus esplendia imutável.
Esgotada a reação ao primeiro choque, conjurado por momentos
o perigo iminente, o fugitivo sentiu despertar dentro de si, ainda mais potente, o eu interior e voltou a
observar e a pensar. Como a beleza da ordem divina era suave e permanecia intacta nas coisas! Apenas o
homem, rebelde, tentava impor a destruição. Por que a guerra? Por que esses momentos trágicos? Que
pretendia, assim de surpresa, a lógica do destino? Fora, talvez, colhido de surpresa, sem preparação
alguma? Pode o caminho da vida apresentar curvas tão imprevistas e imprevisíveis que a razão fique inibida
e se inutilize toda a nossa orientação? Não. O sábio deve conhecer todos os ataques possíveis, deve ter
atingido filosofia completa que encare todas as possibilidades da vida, deve ter achado uma verdade
universal e satisfatória, que lhe dê a razão de todo fato e o encaminhe à solução de todo problema. Queria
e devia entender, possuir respostas que bem sabia não podiam ser obtidas senão por si mesmo. Há
responsáveis? Quem são e onde encontrá-los nesse oceano de forças e de homens que é a sociedade? Podem os
dirigentes impor sofrimento a povos inteiros ou os dirigentes não mandam senão na aparência e, realmente,
obedecem, e todos os seus súditos também, a leis e forças de que são apenas os expoentes? As causas, agora,
são diferentes das visíveis; outra é a hierarquia dos responsáveis; todos são golpeados por outras razões
internas, totalmente diversas das que se mostram externamente; os poderosos constituem o instrumento de
outra inteligência e executores de planos diferentes dos seus; e os verdadeiros responsáveis (quem os
conhece!) apenas podem ser atingidos pela justiça de Deus. Só Ele sabe avaliar, nós não sabemos; só Ele
conhece a trama: secreta da vida de cada um, por nós desconhecida; só Ele tem o poder de alcançar e golpear
que não temos. A lógica do espírito faz-nos procurar justiça perfeita, que não existe na terra; onde
encontrá-la? Até que ponto, caso por caso, o homem é livre e até que ponto chegam o poder e a extensão da
fatalidade no destino? Qual o limite entre as duas zonas e o equilíbrio entre as duas forças? São as
grandes massas responsáveis como massas, independentemente dos lideres, que são responsáveis perante a Lei?
São inexoravelmente arrastadas pelo determinismo histórico?
O homem pensava. Os problemas, tão remotos para os demais,
estavam-lhe muito próximos Encontrava-se em pleno turbilhão, a seu redor girava o "maelstrom" do mundo e o
vórtice tentava agarrá-lo também a fim de arrastá-lo até ao fundo, em suas espirais. Tinha de defender-se.
Mas, para defender-se, necessitava compreender. Um tipo normal não teria feito esforço maior que o
necessário à defesa superficial, contentando-se com tentativa de defesa. Ele, porém, exigia de si mesmo uma
defesa profunda, seguríssima, colocada muito além da ilusão costumeira. Esta sua reflexão mesmo nesse
momento não era inútil. Sob a tensão nervosa e o esforço, em pleno desenvolvimento da reação ao choque
recebido, seu espírito ferido expedia centelhas e seu cérebro clarões de relâmpagos. Como sua vida, assim
toda a sua reação era preponderantemente psíquica, isto é, se dava no campo em que aquele homem mais se
desenvolvera. Restringindo o problema aos elementos mais pessoais e urgentes, procurava saber que teria
acontecido consigo. Para sabê-lo, interrogava a própria consciência, perguntava a si mesmo se era ou não
culpado e se por isso devia ou não ser responsabilizado. A ele, conhecedor do funcionamento das forças da
vida, parecia-lhe mais útil perscrutar a lógica interior dos fatos de preferência à sua aparência exterior.
Apreender os acontecimentos nas fontes, nas causas, tal era o seu método. Que queriam as forças do destino
nesse momento crucial? Esse era o problema e não podia ser outro em universo não sujeito ao acaso, mas
dirigido por Lei justa, lógica e inteligente. No passado, dera por acaso nascimento a algum impulso e, por
isso, a reação da Lei o ameaçava agora? A verdadeira ameaça residia nisso e não na materialidade da guerra.
Será que essas forças, por ele mesmo colocadas em seu destino, o culpavam agora, se erguiam ameaçadoras no
seu caminho e iam pedir-lhe conta do que fizera até então? Ou, quem sabe, era inocente e tudo quanto lhe
acontecia em torno não passava de mero incidente de superfície e não lhe dizia respeito? Se não pendia
sobre sua cabeça nenhuma sanção da parte de Deus, que coisa podia temer por parte dos homens? Rebuscando na
sua consciência, procurava saber qual dentre as forças do passado estava tentando reaparecer e que natureza
e potência possuía; queria descobrir que impulso queria agora manifestar-se exteriormente, dando vazão a
seu dinamismo, completando sua oscilação desde a causa até o efeito. Não havia, porém, tempo para detidas
análises. Nos momentos decisivos e terríveis desaba o edifício das realizações humanas, a razão se
embaralha, uma síntese da verdade aparece completamente nua perante a consciência e a voz de Deus logo soa
clara. Dali a pouco parou, com a rapidez do relâmpago seu espírito intuiu e, nisso, ouviu uma voz interior
que lhe dizia: "Fuja; mas, vá para onde for, você não correrá perigo algum".
A pobre família, já bastante afastada da cidade e do perigo,
diminuiu o passo, em silêncio. O homem, que ia na frente, sem voltar-se para trás percebia a dor e o medo
dos dois seres queridos que o acompanhavam. Pareceu-lhe, então, estar suportando nos ombros o peso de
imensa cruz, o peso da dor do mundo, que quase o esmagava. Irresistível impulso levava-lhe o espírito a
gritar ao universo: "Sou inocente". Depois se surpreendeu a pensar: "Estranho, esse colóquio com Deus, logo
nesse momento e nessas condições! Depois, percebeu como estava cansado e as forças o abandonavam. Então,
pensou: "Quem defende a vida? Quem me defende? Quem está ao meu lado agora, no momento do perigo? O Estado,
talvez?". Recordou as belas teorias que lhe foram ensinadas na escola, seguidas e acreditadas, e sorriu
amargamente. Onde estava agora o Estado, esse ente gigantesco dos tempos presentes, todo-poderoso, que tudo
exige, tudo recebe e, por outro lado, tudo deveria dar? Ausente. Agora o Estado tinha de pensar em si mesmo
e abandonava os indivíduos a seu próprio destino. As construções sociais do homem estavam em ruínas; não
ruíam apenas as construções divinas da vida. Esta, por suas reservas inesgotáveis, capacidade de adaptação
e milenares experiências da raça, soube estar sempre preparada para tudo, especialmente nos povos que muito
viveram e sofreram, pois ninguém vive sem aprender e pessoa alguma sofre inutilmente. A vida sabe muito bem
passar sem a interferência do Estado. Então, as aquisições recentes evaporam-se e apenas permanecem as
aquisições profundas e seculares. O homem pode fracassar, a vida não. Quando o homem se engana, a Lei,
através de providencial lição de dor, o reconduz ao caminho reto da ordem e, assim, a vida se refaz e
continua. Por ela continuamente vela e a protege a Divina Providência, que constitui efetiva proteção
biológica, defesa automática e poder saneador, intima providência manifestada pela sabedoria do sistema. Se
naquele momento o Estado, providência humana, desabava, a providência de Deus permaneceu firme.
A riqueza, potência do mundo, teria talvez defendido esse
homem? Embora oferecesse milhões, na hora do perigo ninguém o ajudaria. Exatamente em momento de
necessidade o dinheiro se tornava inútil. Se esse homem fosse um potentado, cercado de servos e
dependentes, seriam eles agora seus inimigos mais ferozes, ocupados apenas em salvar a própria pele. No
momento decisivo, a riqueza e o poder, se ele os houvesse possuído, tê-lo-iam traído; não caíra, porém, na
ingenuidade de acreditar no contrário. Vitor Hugo, nos primeiros capítulos de Os Miseráveis, fala, a
propósito da decadência de Napoleão, de marechais traidores, do senado que, depois de havê-lo endeusado, o
insultava e escarrava no antigo ídolo. E tratava-se de Napoleão. Mas a lei, para fracos e poderosos, foi,
é, e será sempre uma só.
Quem, pois, estendia a mão a esse homem, atirado à desgraça?
Quem o acompanhava na fuga, ajudando-o a suportar o peso da desventura? Os amigos, os admiradores, quem o
adulava nos bons tempos? Não, ninguém. As perfumadas nuvens de incenso, como fumaça inconsistente, haviam
desaparecido no ar. Vaidades humanas. Agora estava sozinho. No momento da provação, verificava a imensa
vantagem dele não acreditar na glória, como não acreditara no poder e na riqueza, a imensa vantagem de
haver-se acostumado a sofrer e a renunciar e estar moralmente preparado. Em sua vida não houvera senão
trabalho, obrigações, dor. Esta a sua bandeira, seu repto, sua força, sua vitória. Apegara-se a valores
indestrutíveis, tomara-se indiferente aos golpes do mundo. Sua pobreza era a sua riqueza, sua nulidade a
sua grandeza, sua inocência, constituía-lhe o poder e a salvação. Apenas a vida séria e dura e as pesadas
fadigas da vida ascensional não lhe haviam mentido nem traído. No entanto, em que situação talvez se
encontrassem agora todos quantos, epicuristas e materialistas, se haviam rido à sua custa, como se se
tratasse de um louco? O apego deles às coisas materiais constituía-lhes agora a causa de grande dor. Na
hora da destruição, porém, ele já se encontrava ligado ao indestrutível. Sua filosofia, e não a deles, é
que no momento da provação resistia. Que triste espetáculo de avidez, de ferocidade, de loucura, de
desespero, lhe apresentava esse mundo que só acreditara nos valores terrestres! Não. O cataclisma não o
apanhava de surpresa, como a tantos. Acima de todos os sonhos de grandeza e de vitória, ele que já vira
como a dor constitui a realidade da vida, agora verificava como a dor é também a realidade da guerra. E via
que o mais desmoralizado de todos os mundos, e sem preparação moral para a dor, agora se encontrava diante
de avalancha de sofrimentos como a humanidade jamais conhecera igual. Agora, podia finalmente comprovar,
não desmentida, mas corroborada pelos fatos, quanto era profunda a sabedoria do superamento, através do
desprezo das coisas humanas. Naquele momento gozava desta grande vantagem sobre seus semelhantes; a de
haver compreendido a vida, de não haver caído no engano de suas miragens, que agora se desfaziam, de não
haver construído na areia, de não haver empregado seu esforço e investido seu capital espiritual na
obtenção de coisas efêmeras. A quantos iludidos, pensava, não lhes vai cair a venda dos olhos, quando
assistirem ao desmoronamento de todas as suas construções! Ele tinha tido necessidade de desenvolver grande
trabalho de concentração e sofrer muito para poder atingir mundo superior, e isso, aliás, sozinho,
abandonado e escarnecido. O áspero caminho de sua maturação evolutiva estava juncado de lágrimas e sangue.
Mas, agora, esse homem, tido na conta de imbecil porque inimigo do desonesto arrivismo que leva ao rápido
sucesso, se achava na situação excepcional de quem conseguiria atingir mundo superior e nele encontrar a
salvação pessoal, a mesma salvação negada aos outros, e por a salvo os seus tesouros, intangíveis aí onde
a guerra não pode chegar.
Há muito tempo ele aprendera a descrer do mundo e a viver
isolado. Mas, embora assim pudesse parecer, não estava só, como bem o sabia. Ninguém pode estar sozinho em
nosso universo. Jamais a ignorância do ateu, o poder negativo do mal, a revolta de Satanás contra a ordem
reguladora de tudo não podem destruir Deus, que continua a existir e a operar não obstante a sua negação e
acima de seus assaltos. Trata-se, sem dúvida, de imponderável que escapa aos grosseiros sentidos do
involuído, mas nem por isso se torna menos, real. Em torno daquele homem turbilhonava solene e imenso o
ritmo das leis da vida, inteligentes, poderosas, ativas. Aquele homem solitário estava imerso nessa divina
atmosfera, aquele homem aparentemente abandonado estava próximo de Deus, e, portanto, menos solitário e
menos abandonado que tantos poderosos ídolos das multidões. O imponderável não lhe voltava as costas, como
aos outros, mas lhe abria os braços. Ao lado daquele homem estavam o seu passado, suas obras, pois nossas
obras nos seguem e a substância da Lei de Deus, ao invés de força é antes de mais nada justiça, e não o
contrário, como acontece no baixo mundo humano. Na hora fatal em que ruía o edifício social e seus valores
se subvertiam, sua defesa residia agora exatamente em sua nulidade humana, por ele tão prezada. Em primeiro
lugar, porque a nulidade, escapa mais facilmente às tempestades, não lhes oferecendo superfície de
resistência e, em segundo, porque, como toda pobreza, significa principio de inocência, crédito perante a
lei de equilíbrio, direito em relação à justiça divina. Ele procurara defender-se por meio da própria
inocência, que encontrara em si mesmo, e não a poder de astúcia, de meios materiais ou de ajuda humana.
Esta lhe parecera ajuda mais poderosa que todos os auxílios humanos. Procurara a força em Deus e na
consciência a resposta E, em silêncio, gritara a sua inocência ao universo. Grito vindo do fundo da alma,
trágico e profundo, que não pode mentir. E o universo, dirigido por Deus, isto é, pela justiça, não pudera
deixar de responder, porque do contrário, negaria a si mesmo. Invocara a ajuda das forças ativas no seu
plano espiritual, e geralmente, no plano material terreno, paralisadas e afastadas pela mal empregada
liberdade humana. Sentiu-se, então, fortalecido, levantou a cabeça e de olhar tranqüilo encarou o futuro.
Ele estava no lugar que o dever lhe apontava. Isso bastava. Essa verificação infundiu-lhe na consciência
sensação de paz e o inundou internamente de nova energia. O horizonte escuro tornou-se límpido e
permitiu-lhe enxergar claramente. A guerra, furacão humano, não o atingia. Essa dor participava do destino
dos outros, não do seu. Aquelas armas não podiam matá-lo. Compreendeu, então, o sentido das palavras da
voz:
"Fuja; mas, para onde quer que você vá, estará sempre em segurança". A Lei de Deus quer que nossas penas
sejam filhas de nossos crimes e não da má vontade e prepotência alheias e que nosso destino apenas possa
ser construído por nós e só por nós. A grandeza e a justiça dessa Lei naquele trágico momento atingiram o
homem com evidência tão viva que seu terror se transformou em confiança e em oração; em meio à dura
provação, caiu de joelhos e agradeceu ao Pai que está nos céus, tão pronto a amar-nos e ajudar-nos, se
nossa vontade espontaneamente lho permitir.
Pondo-nos de face à realidade mais crua da vida, pudemos
observar, em momento crítico, a transformação evangélica dos valores da terra em valores do céu e atingimos
o resultado prático ou, mais precisamente, utilitário da invulnerabilidade e salvação, através do
superamento da dor. Esse modo de proceder pode ser incompreensível para o tipo humano normal de nossos dias
que, quase sempre espiritualmente involuído, põe em jogo outras leis e outras forças e não sabe compreender
aquelas que vemos aqui em plena ação. Torna-se necessária, pois, esta condição: a inocência; apenas ela
permite visão clara, apenas quem a possui pode invocá-la perante Deus. Não se trata, por certo, de
inocência universal, e absoluta, que nenhum homem, enquanto homem, pode possuir. Se a houvesse alcançado,
já estaria bem longe deste lugar de sofrimento. Trata-se, isso sim, de inocência particular, relativa a
determinadas culpas e às provações correspondentes. Mais do que isso as inocências humanas não podem ser,
embora mais ou menos extensas. Um é inocente em relação a um fato; outro é inocente em relação a outro
fato; a mesma coisa se diga relativamente à culpa. Por isso, são os destinos tão diferentes e todos se
cumprem inexoravelmente. O destino daquele homem não continha reações de violência e de sangue; estava,
pois, imune desse lado em que os outros eram vulneráveis; não precisava, por isso, de sofrer as provações a
que os outros seriam submetidos. Estava, ao contrário, exposto a provas espirituais de lenta maceração e
desmaterialização, que os demais nem sequer podiam imaginar, a prolongadíssima5 agonias, à violência das
tempestades psíquicas, ao choque contra as forças do imponderável completamente desconhecidas pela
generalidade das pessoas. Ele, cônscio de seu destino, de seu passado e de seu futuro, compreendeu que a
guerra não lhe dizia respeito e nenhum homem ou projétil poderia atingi-lo, se não o permitissem as leis da
vida, aplicadas a seu caso particular.
Em geral, na defesa da vida e na luta pela vitória, a
inteligência humana não vai além das causas e acontecimentos próximos Em geral, as verdades humanas
condicionam-se ao tempo e ao espaço, são verdades de interesse e de partido. Trata-se de verdades que
apenas interessam ao indivíduo ou ao grupo e, por isso, mutáveis e passageiras. Estamos procurando a
verdade verdadeira que, longe de ser relativa e facciosa, tem de ser universal, interessar a todos os
homens, estar acima do caso individual e do interesse particular. Acima da verdade superficial, procuramos
a verdade profunda, superior a simples opinião, independente do espaço e do tempo, permanente, capaz de
interessar a todos os homens indistintamente e válida para todos, fortes e fracos, poderosos e humildes,
vencedores e vencidos, pois, nos maravilhosos equilíbrios da Lei de Deus e no funcionamento orgânico do
universo, todo ser tem lugar certo e razão de ser.
Para quem compreendeu essa verdade, a concepção das coisas
muda inteiramente. Quem compreendeu que a força humana não pode impedir a ação das forças cósmicas, senão
momentaneamente e assumindo a responsabilidade pelos danos, não diz mais: "Ai dos fracos e dos vencidos",
mas afirma: "Ai dos culpados, embora vencedores. O que tem valor permanente não é a posição material, e sim
a posição moral. Exime-nos da responsabilidade a inocência e não a força, que na melhor das hipóteses
poderá retardar, mas nunca impedir a reação primitiva da lei de justiça. De acordo com a lei de evolução, o
futuro caminha em direção ao reino de Deus, que pertence somente aos justos. O poder militar, a
superioridade técnica, o dinheiro e a astúcia não podem destruir a Lei de Deus, que participa
essencialmente das coisas. Quem acredita que para vencer baste a força, representada por grande exército,
grandes recursos e organização e dotada de férrea tenacidade, não compreendeu como, no funcionamento das
leis da vida, exatamente nesse apelo à força e à conquista violenta, como na guerra reside o ponto fraco do
sistema que, precisamente por isso, traz em si mesmo o germe da própria destruição. Então, o gigante de pés
de barro desaba, seja qual for; o fato é verdadeiro para quem quer que se encontre na situação de aplicar
essas leis, para quem quer que se encontre nessas condições. Não estamos expondo mera opinião, mas
simplesmente verificando a existência de algumas leis da vida. O preceito evangélico "Quem com ferro fere
com ferro será ferido" exprime racional e inviolável lei biológica. Não fizemos outra coisa senão estender
a bem mais vasto campo o princípio da inocência acima exposto, mas tendo sempre em vista a guerra Em face
da agitação da atividade humana, a sabedoria dessas leis íntimas, colocadas nas raízes dos acontecimentos,
é que rege todas as coisas: por isso, a força mais poderosa, a que vence finalmente, é a justiça. As
exceções não passam de momentâneos desvios, concessões mínimas à liberdade humana que, para aprender deve
experimentar o erro. Mas, cedo ou tarde, são retificadas e reconquistadas através do áspero caminho da dor.
Para que o homem aprenda, a Lei deixa-se fraudar, mas depois os iludidos devedores caem em si e reconhecem
nela o único árbitro da vida. Explicam-se desse modo as oscilações da História. Com isso, neste capítulo
demos novos desenvolvimentos e aplicações aos conceitos por nós já considerados quando estudamos a lei do
merecimento.
Continuemos seguindo as vicissitudes de nosso personagem.
Ei-lo numa casa de colono, atopetada de outros fugitivos. A guerra, vindo do Sul, aproximava-se raivando,
com rumor sinistro e cada vez mais intenso, mordendo a terra com feroz encarniçamento. Tudo, como se
estivesse carregado de ódio, explodia à traição. As casas, as pontes, os aquedutos, as instalações
elétricas, as oficinas, as estradas e as ferrovias voavam. A terra, sem exagero, tremia. Em plena noite,
clarões sinistros iluminavam o céu escuro sobre a cidade em chamas. Contínuo ribombo de explosões e
perigosos abalos sacudiam o ar. Nos campos, cada vez que apareciam aparelhos isolados ou em grupos,
começava, em cadência acelerada, o canhoneio das baterias antiaéreas vizinhas e sobre as cabeças caia chuva
sibilante dos estilhaços. Os grandes pássaros de prata, maravilha da técnica e tão belos no límpido azul do
céu, desciam rápidos como falcões, semeando morte; ou, então, chegavam de surpresa, em vôo rasante,
metralhando. Todos os flagelos da guerra se sucediam em aterrorizante crescendo. Nas casas não havia nem
água nem luz; faltavam as pontes e, por isso, nem se pensava em reabastecimento. Em compensação, a terra
estava inteiramente minada, pronta a explodir sob o passo mais leve. Então, como se não bastasse esse
inferno, os soldados começaram a entregar-se ao saque e à orgia. Embriagados com o vinho tirado às pobres
mesas, roubavam as últimas provisões. A propriedade estava praticamente abolida. Tornava-se necessário
expor-se a novos perigos para proteger, embora ameaçados de revólver, miseráveis sobras de tantos anos de
privações. E, finalmente, o canhoneio. Baterias colocadas bem próximo atraíam chuva de granadas. A todo
momento podia dar-se o inesperado impacto; e ouvia-se, às vezes isolado, às vezes em longas rajadas, mas
todo tiro sempre perfeitamente decomposto em três tempos bem distintos: a explosão da partida do projetil,
o sibilo do trajeto e o ruído do impacto. Prestava-se atenção ao sibilo, pois trazia a morte consigo. Onde?
Podia chegar a qualquer momento, pelo próprio teto. A morte rondava permanentemente no ar. Ouviam-na sair
dai; daí se esperava que ela chegasse. As vezes a morte passava ao longe, às vezes caía a poucos metros de
distância.
Nosso personagem observava. Que força estava movimentando
esse inferno? Sentia no rosto a respiração do mal, atormentada e cheia de cansaço. Era de certo a voz de
Satanás. Quem a ouviu uma vez, não a esquece mais. É áspera, traidora, egoísta, homicida, destruidora. A
explosão exprime essa voz, resume essa alma. É terrível ânsia de tudo despedaçar, esfacelar, aniquilar
completamente. Tudo tem de ser reduzido a pedaços, emporcalhado, dilacerado, retorcido, queimado, cortante.
É o estilo lançado pela guerra, estilo Kaput, estilo moderno, estilo destruição. Esse é o aspecto atual da
Europa. É o estilo do mal. É psicologia, filosofia, método científico, loucura ajudada pela lógica, pela
técnica, pela inteligência. É o destrucionismo, última fase do materialismo. É o último produto lógico da
ânsia desesperada que a civilização moderna trocou por dinamismo criador, é o paroxismo da ação levado a
grau de loucura, desequilíbrio não admitido pela natureza, precipitação fatal de um ciclo e prelúdio de
fatal mudança de rumo, que está presente em toda regressão. O mal está encerrado no tempo e, por isso, tem
pressa. Aí reside seu ponto fraco; ele não o ignora e, portanto, corre. O culpado foge. É desesperado,
incerto, desordenado. O sábio trabalha com segurança e calma; assim trabalha melhor e com muito menos
dificuldade. O erro representa grande diminuição de rendimento. Essa ansiedade do mundo não se poderia
controlar senão por meio de aceleração contínua, constituía instabilidade que deveria necessariamente
terminar na autodestruição. Isso revela o mal, cuja essência é a negação. É raiva que quer ver tudo
subvertido, despedaçado. Tudo deve explodir, tudo se destina a matar. É o reinado da fera. Seu sistema é a
força; a vitória, mero pretexto, ilusão; a realidade, seu verdadeiro desejo é constituído pelo massacre.
Eis aí o ponto a que chega e como termina o método da força.
Por isso Cristo ensinou no Sermão da Montanha : "Ouvistes
que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu vos digo, porém, que não resistais ao mal; mas, se
qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te
o vestido, larga-lhe também a capa;..." O mal sabe iludir-nos com suas miragens de grandeza e, assim,
desafoga a sua raiva, e quem acredita na força e a emprega se torna instrumento da lei e se liga
inteiramente à destruição, inclusive à própria. E, então, personifica o princípio destrutivo. O bem afirma
e cria, e quem a ele se liga é obrigado à construção, inclusive à própria. Hoje, os construtores não podem
senão esperar que a tempestade do mal se acalme e se canse. Isso é brutal, egoísta, desapiedado; mas, acima
de tudo, é estúpido. Trata-se de força agitada e frenética, porque desequilibrada, de força cega e absurda,
cujo desenvolvimento termina na loucura, no desespero, inclusive na própria loucura e no próprio desespero.
Eis o clímax do método da força. Quão longe estamos das características do bem, que é equilibrado, calmo,
confiante, esclarecido! Ninguém pode destruir essas leis e impedir que sua manifestação lhes revele a
substância
Assim, a guerra avançava como gigantesco rolo compressor,
trazendo morte e ruína, às cegas, ao acaso, até para civis inermes, crianças inocentes, mulheres
inofensivas, doentes, velhos. E a loucura destruía com exatidão científica, método racional, lógica fria e
sistemática, para obter o maior rendimento em morte e ruína, à custa de esforço mínimo, como acontece na
fabricação das máquinas em série, na matança de reses. Mas essa ciranda é um vórtice que não se mantém
senão a custa de massa e de velocidade, isto é, acelerando continuamente sua fúria macabra, escancarando
cada vez mais as fauces e envolvendo em suas espirais número sempre crescente de vítimas. Tem avidez delas,
atrai-as, prende-as e assim se alimenta e se robustece. Ai de quem pôs em movimento o "maelstrom" e se lhe
confiou. Quem foi o apanhado por ele não lhe escapa mais. No fundo, o que há é desespero para todos,
vencedores e vencidos. Estamos vivendo a última conseqüência da filosofia nietzschiana. Seu super-homem
ideal arranca a máscara e mostra seu verdadeiro rosto de fera. Nietzsche morreu louco. Loucura, naufrágio
final do espírito, satânica ruína de rebeldes à Lei, conclusão fatal inserida no sistema e que diz respeito
a quem quer que o siga. Eis os resultados de ciência utilitária, amoral, de ciência sem consciência: as
invenções do gênio prostituídas ao interesse e envenenadas ao ponto de se tornarem instrumento de morte. A
primeira aplicação notável da conquista do ar foi o massacre da Europa. Não seria ótimo que os cientistas
não comunicassem mais, a semelhante mundo, os resultados de suas descobertas?
De tarde, enquanto a infernal voz de Satanás dominava a
planície, na miserável casa de colono, rezavam. É sublime falar com Deus, é reconfortante senti-lo bem
perto, principalmente nas horas terríveis. Rezavam com simplicidade e fé, na velha cozinha do colono,
enfumaçada, pequena, pobre. Rezavam, irmanados na mesma miséria, o camponês e o intelectual, o pobre e o
rico, o rústico, morto de fadiga, e o homem fino, abatido e mal vestido. As grandes idéias da vida e da
morte, do ódio e do amor da família e dos filhos, do dever do sacrifício, estavam ao alcance da compreensão
de todos, formavam essa estrutura da vida, instintiva e essencial, comum a todos. A prece sabia falar ao
coração de todos. Em sua fé milenária a raça, já longamente experimentada nas desventuras, reencontrava sua
força. A visão das excelsas coisas do céu, de um mundo melhor no além, confortava a miséria do momento. Nas
asas da prece aqueles desventurados se sentiam transportados da dor à paz do coração e à confiança na ajuda
de Deus, e não ao brilhante e científico desespero do mundo. Em meio daquela pobreza fraterna se sentia
vagar suave esplendor; era a figura de Cristo que estendia sobre todos as mãos protetoras, se inclinava
sobre toda dor para aliviá-la e na soleira da porta da pobre cabana se erguia poderoso, desafiando a
tempestade.
Assim ia o tempo correndo, entre forçados ócios empregados
em meditação, perigos e aborrecimentos, terrores e esperanças. Por último, nova ameaça se juntou às demais:
a caça ao homem. Militares armados entravam nas casas e requisitavam à forca a última mercadoria que
restara: o homem. Certa tarde, chegaram de surpresa à referida casa de colono. Muitos, alertados, se
esconderam ou fugiram alguns foram presos. Nosso personagem estava na cama, cansado, e não fugiu nem se
escondeu. Não tinha força para defender-se. Gastara todas as energias no cumprimento do dever, isto é,
protegendo, prevendo, provando, encorajando. Não lhe restaram forças para pensar em si mesmo. Aquela hora
era, pois, a da Providência, seu derradeiro auxílio. Além disso, causava-lhe invencível repugnância ter de
defender-se sozinho, não confiar em Deus para confiar em si mesmo e nos métodos de defesa humanos. Não
podia mudar seu sistema, que era o de chamar sobre si o cumprimento do dever, ajudar os outros e confiar na
Providência. Sua defesa não era a do tipo comum, isto é, improvisada na última hora e superficial. Fugia da
força como fugia da astúcia. Preferia a defesa longamente preparada na procura da invulnerabilidade que
deriva do estado de inculpabilidade moral perante Deus, estado em que ele, há muito tempo, tinha procurado
colocar-se. Mesmo na luta defensiva comum, empregava as forças de plano evolutivo mais elevado, submetendo-
as mais uma vez à experimentação, mas sempre confiante nelas por havê-las visto funcionar tantas vezes. Ele
percebia que compete a Deus defender a quem, tendo empregado tudo no cumprimento do próprio dever, não
possuía mais meios e forças para prover-se do necessário. Assim, quis, até nesse momento crucial, manter-se
coerente com os princípios que jamais o haviam traído. Pôs em prática, portanto, seu método; antes de mais
nada, permanecer, com honestidade e plena consciência, tranqüilamente no seu posto de combate e de dever,
até o último limite; depois, nada mais lhe restando, desinteressar-se por si mesmo, abandonando-se às mãos
de Deus com a fé mais completa. Percebia o profundo funcionamento das leis da vida e que estas não podiam
mentir-lhe nem traí-lo; sentia-se participe da imensa organicidade do todo e sabia que a mente diretora não
podia permitir a dispersão de parte alguma, por menor que fosse; tinha a nítida impressão da
indestrutibilidade fundamental do próprio ser. Posição, por certo, estranha e incomum. Mas é inegável que
as forças da vida a percebiam, pois se adequavam a essa sua posição especial. Ele via, então, a Providência
tomar corpo na realidade e manifestar-se-lhe aos sentidos, de modo a tornar-se auxilio concreto, via Deus
avizinhar-se-lhe e a justiça de Sua Lei tirá-lo do perigo. Sua experiência não era impregnada de dúvida,
desconfiada, analítica, mas confiante e embriagadora e cheia de alegria a que não era capaz de subtrair-se.
Assim, de alma perfeitamente calma e visão absolutamente límpida, esperou o perigo.
Observemos o encontro entre as duas forças contrárias.
Trata-se de dois princípios diversos, de dois métodos de luta, de dois mundos opostos. Espírito e matéria,
bem e mal, se defrontam e desafiam, cada qual com suas armas. Quem vencerá? O homem isolado, inerme, mas
justo e, por isso, ajudado por Deus? Ou o militar armado, sustentado pelo número, mas assistido apenas por
um organismo defensivo humano? Os mesmos conceitos e as mesmas posições, aqui considerados em seu aspecto
individualista, vimo-los na "Visão" (aspecto coletivo) referida neste volume (cap. XVI e XVII) e no
encontro entre Cristo e Pilatos (cap. XXI). Também no Quo Vadis de Sienkievicz vemos S. Pedro e Nero
olharem-se por um instante frente a frente. Em Os Miseráveis, de Vítor Hugo, Mons. Myriel permanece calmo
diante da ameaça de Jean Valjean, deixando que apenas sua inocência o defenda e na noite do furto, vemo-lo
permanecer ileso, invulnerável, nas mãos do assassino, que se torna impotente para feri-lo. A veracidade
dessa lei do merecimento e o poder dessa força da justiça e da inocência foram, embora não demonstradas,
percebidas pelos outros.
Nosso personagem, que estava na cama, vestiu-se e esperou.
Avisaram-no: "fuja, senão eles o prendem" . Sentou-se calmo, escutando os passos dos militares que
vasculhavam a casa. Ouviu-os aproximarem-se. Um oficial escancarou a porta de seu quarto e, apontando-lhe o
revólver, avançou até o meio do cômodo. "Você vir conosco", disse-lhe. Levantou-se e respondeu
tranqüilamente: "Não posso, estou muito cansado, vou cair ao cabo de poucos quilômetros, não tenho mais
força física. Sofro há muitos anos. Não posso suportar novas fadigas, novos incômodos. Estou falando a
verdade. Se não acreditarem, podem matar-me agora mesmo. Estou preparado". O militar, que lhe falara,
olhou-o com seus olhos metálicos e acrescentou: "Você vir conosco, logo, ou eu disparar". Nosso personagem
repetiu: "Matai-me. Estou preparado. Sempre estive. Peço apenas um minuto para falar com Deus. Ide até o
fim nessa destruição. Estais armados até os dentes e podeis fazê-lo impunemente. Quem pode deter-vos?
Apenas o vosso dano; não o vedes, porém. Minhas armas são outras. Não o entendeis. Quem, pois, vos detém?"
Em seguida, caminhou tranqüilamente em direção a um espaço
vazio da parede, nele apoiou as costas, estendeu os braços em cruz, fechou os olhos para o mundo exterior,
reabriu-os para o outro lado da vida, esperou, rezando deste modo: "Senhor, em tuas mãos encomendo o meu
espírito. Não permita se manche este homem com um homicídio, pois é da lei que ele mais tarde o pagará com
"sua" morte. Forças cósmicas do bem, acorrei contra as forças do mal que agora estão envolvendo este pobre
cego, a fim de ligá-lo a nova dor, para incorporá-la a seu destino; assim, não será ele perseguido
incansavelmente até que a reação do delito se esgote com sua morte violenta. Senhor, aqui está minha vida,
para que o bem, e não o mal, triunfe". Daí, como supremo e concludente gesto, fez o sinal da cruz, isto e,
o sinal da dor, o sinal do amor e das maiores forças colocadas nas raízes mesmas da vida, o sinal do
Senhor, símbolo e síntese da gênese e da criação principalmente em relação ao espírito. Depois, pensou:
"vem, ó morte, querida irmã, aceito-te alegremente das mãos de Deus, pois assim me livras deste inferno".
Não tendo ouvido mais nada abriu os olhos. Seu olhar cruzou
o do oficial que o fitava: o olhar metálico e o olhar ardente se defrontaram. O primeiro tentava
compreender e não o conseguia. Extenso abismo abria-se entre os dois. Ele sentia atração e repulsão,
fascínio e raiva, absoluto desejo de matar o rebelde, como havia ameaçado, aliás, e impossibilidade de
fazê-lo. Invisível potência o detinha. Ficou ali parado, perplexo com essa hesitação incomum, para
decifrar-lhe o sentido, procurando descobrir que coisa o paralisara, que coisa se interpunha entre si e o
homem, ao ponto de impedir-lhe o passo. Por que essa inércia? O homem de ação e de ciência, habituado a
tomar conhecimento dos fatos, queria saber o porquê e a razão; por isso, escrutava, olhando aquele homem
enigmático que tranqüilamente esperava a morte. O homem de fé olhava o oficial e lia-lhe no coração, muito
embora ele não estivesse percebendo nada do que se passava consigo.
Defrontavam-se os modelos de duas civilizações diferentes. O
oficial era o produto de pseudocivilização científico-mecânica, chegada às suas últimas conseqüências,
civilização rica, armada, astuciosa, e potente, e, no entanto, pronta a desabar. Do outro lado estava o
representante de nova civilização, no momento apenas embrionária, a única possível civilização verdadeira:
um indivíduo desacompanhado, pobre, desarmado, sincero, justo. O oficial não podia, com os olhos da carne,
ver através da matéria e penetrar no segredo, que o perturbava, daquele homem enigmático a quem, embora
armado, não tinha coragem de matar. Este homem representava principio diferente, mas tinha coragem de
matar. Este homem representava princípio diferente, mais sublime e poderoso: o espírito. E o militar a si
mesmo perguntava por que essa invencível resistência que, embora ele não conseguisse compreender, lhe
chegava do imponderável, e qual o mecanismo dessa energia desconcertante e capaz de inibi-lo desse modo.
Nosso personagem fechou de novo os olhos, esperando o estampido do tiro: a morte. Silêncio. Quando os
reabriu, o oficial desaparecera.
O homem esperou, mas ninguém se preocupou mais com ele. A
morte passara bem perto de si e não o quisera. Deus passara bem junto dele. Atirou-se sobre o enxergão e
adormeceu como o fazia toda noite, tranqüilo e agradecendo, humildemente, ao Pai que está nos céus e
desejara continuasse a trabalheira toda de sua vida.