Cristo não desceu apenas para ensinar-nos a possibilidade de uma libertação. Colocou-se no centro do fenômeno e o viveu. No centro da dor humana, que fez Sua. No centro da dissonância, para reabsorvê-la dolorosamente na harmonização do Seu amor. Fez sua a escravidão humana e teve que, com trabalho e sofrimento humano, conseguir a libertação. Fazer-se homem é imergir completamente, até o fundo, no plano humano, em sua atmosfera, em suas debilidades, em suas sensações; em sua iniqüidade. Significa fazer própria essa iniqüidade e por ela ter de responder, em Seu nome, diante da Lei de Deus. Assim, Cristo se fez culpado, em Sua Pessoa, pelas iniqüidades humanas, devendo expiá-las. O que aturde e assombra nossa compreensão nessa descida do Cristo é este aprofundamento de divindade na imundície da carne humana. (P. Ubaldi - Ascese Mística).
Um livro diz tudo sem o querer, especialmente o que não se quer dizer, pela preocupação de o calar. A miragem que vibra nos olhos do escritor transfere-se para as suas páginas. Quem sonhou glórias, escreverá glórias; quem egoísmo, egoísmo; quem avidez, avidez; quem sensualidade, sensualidade. Mas também aquele que tudo lutou e sofreu pela elevação do espírito — diga o que disser, só falará sobre elevação do espírito. É como uma música de fundo, uma cor predominante, uma psicologia dominante que não se quer, não se improvisa, não se inventa. (P. Ubaldi - Ascese Mística).
É necessário, na ordem do universo, que a dor caia quando for superada a função evolutiva de prova e de lição. Quando tivermos compreendido tudo e com isso houvermos esgotado sua função de escola e de expiação equilibradora na ordem dos impulsos morais, então, ela cai, como as outras ilusões da vida. Então, não só não se verificam mais, por haver sido alcançada a medida do débito, as condições exteriores da dor, porque um assunto inútil aos escopos do bem está fora de equilíbrio (trata-se de equilíbrios automáticos ingênitos da Lei), mas advém um fato novo. Mesmo que a dor permaneça como fato exterior, advém por evolução uma tão profunda transformação de personalidade, que ela lhe escapa. A evolução, levando-a a uma fase nova, deu-lhe um novo modo de ser no qual a dor não repercute com as mesmas reações do nível humano; em outros termos, a ascensão levou o espírito a tal grau de harmonização (amor divino), que não existe mais dissonância que tenha força para a penetrar e alterar. Então, mesmo que permaneçam idênticas as condições ambientes, o choque daquela força não encontra mais impulsos antagônicos nem reações contra as quais se assanhe por sua expansão — e desaparece sem resistência. O instrumento receptivo mudou e bastou esta mudança de natureza, para que se transformasse completamente a gama de suas ressonâncias. Superpõe-se à consciência uma opacidade de audição; o espírito não responde senão àquela ordem de vibrações e a surdez naquele plano é substituída por um poder receptivo no plano mais alto do amor. O fato positivo e o fato negativo convergem para o amortecimento progressivo da sensação penosa da dor, na sensação gloriosa do amor. A mutilação do desejo e a compressão do sofrimento se transformam, então, na multiplicação e expansão do amor: a dor se muda em felicidade. Agora, a dor é amor, nisto se afirma e jamais se encontra a si mesma. junta-se a Cristo, ao amor que Ele nos trouxe — compreende e alcança a Sua redenção. (P. Ubaldi - Ascese Mística)
O povo que estava ao pé da cruz não compreendera esta fatalidade de paixão, esta inviolabilidade de princípios e como Quem a quisera, não poderia renegá-la. "Salvou os outros e não se pode salvar a Si mesmo!" - diziam. "Se é o rei de Israel que desça agora da cruz, e nós acreditaremos n'Ele!" " O povo, que era o mundo, imaginava ser Cristo um homem que deveria pensar em si mesmo. Se o supunham um Deus, era no sentido de deus humano, cujo principal fim e uso do próprio poder seriam em sentido egoístico. No vértice de sua paixão, Cristo não existia para si. Da Cruz, olhava o mundo dividido por um abismo de incompreensão. O mundo imagina um Deus e uma lei à sua semelhança, não ainda perfeitos, que admitem modificação, retoques, arbítrio; confunde liberdade com licença, poder com abuso — e não imagina que tudo isto desaparece quando se sobe. O mundo acredita que, como aqui em baixo, possam existir no Alto consciências isoladas e egoístas; que se substituam, segundo os caprichos, as ordens absolutas da Lei. E invoca o milagre como prova de poder, enquanto que o poder maior está na ordem. (P. Ubaldi - Ascese Mística).
Como poderemos compensar a pluralidade das concepções e a dissonância das contradições que derivam daquele subjetivismo? A filosofia, precisamente aí onde o pensamento, elevando-se e abstraindo da simples averiguação objetiva, chega a ser necessáriamente subjetivo, é um mar de inconciliáveis divergencias que desorientam o espirito, dando a sensação de ser absurda a pesquisa da verdade. E, contudo, una é a verdade. Será então incapaz de atingi-la o subjetivismo divergente? Foi exatamente, como reação a tudo isso, que a ciência se mutilou na objetividade de compreensão, com o fim de alcançar uma verdade igual para todos. Mas, é evidente que o conhecimento ganha em profundidade e potencialidade, à medida que passamos do mundo exterior ao interior. Não é baixando-se ao primeiro, mas elevando-se ao segundo, que se ganha em verdade. É precisamente aí quando mal nos separamos da superfície sensória e progressivamente nos aproximamos da íntima substância, que começa o subjetivismo. Isto é, a variedade e a divergência das expressões individuais: as vias do conhecimento estão na subjetividade e as vias da subjetividade constituem as vias do separatismo intelectual que parece distanciar da unidade do conhecimento. A conquista da verdade deve, portanto, passar através desta contradição e saber conciliá-la. Uma verdade igual para todos não pode ser senão uma verdade de superfície. A procura de uma realidade mais profunda conduz a divergência. Pois bem. Importa, então, saber compreender antes, e depois coordenar e reorganizar aquela divergência. É natural que as apreciações mudem à medida que subimos, porque tanto mais então, se desperta e movimenta o eu pessoal, isto é, o múltiplo individualismo em que se reflete a unidade do absoluto. Este permanece simples e monista e nada perde de seu caráter unitário, exprimindo na infinita variedade do relativo. Devemos recordar que o eu que concebe é um relativo e está em evolução. Preciso, então, se faz que superemos essa divergencia e reconstruamos a unidade da substância. É necessário que não nos intimidemos em face dessa aparente inconciabilidade, dessa dissonância de interpretações; devemos empenhar-nos, através da coordenação das expressões do relativo, em reconstruir a trama unitária do absoluto. A cisão está na manifetação humana, não na substância. Reorganizemos os reflexos particulares e recontruiremos o aspecto da única luz. Da fusão das visões unilaterais sairá um mosaico que nos fornecerá os delineamentos do modelo divino. E as variadas intuições do subjetivismo escalonar-se-ão por amplitude e profundidade; as verdades relativas coordenar- se-ão, as menores atrás das maiores, até as mais compreensivas e puras - aquelas que mais tiveram podido avizinhar-se da substância e houverem conseguido torná-la de maior transparência. Serão consideradas como tantos jatos de luz, cada um dos quais representa o sinal de uma linguagem eterna e infinita, a palavra de um sermão divino. Serão consideradas sucessivas aproximações da alma humana, que ascende entre trevas e lutas ao longo do mesmo caminho da verdade, do relativo para o absoluto, da análise para a síntese, galgando, por seu próprio esforço, as vias da unificação. E, por unidade de medida e índice de verdade, tornar-se-á, não a objetividade ou o juízo do número, mas o grau de purificação do ser que, na sua evolução, se aproxima de Deus. Deixe-se também florescer em mil formas o jardim da intuição. Cada flor diversa será igualmente bela e exprimirá uma revelação. Ver-se-á, então, que em essência, cada flor, em sua variedade, traduz a mesma eterna beleza e canta a mesma infinita sapiência. A flor mais perfeita e mais pura falar-nos-á docemente com transparência mais evidente; a mais rude e primitiva mal saberá balbuciar. Una, porém, é a palavra, porque unos são o plano de criação e o pensamento de Deus. E, então, através da multiplicidade, bela, porque rica, do subjetivismo, espontaneamente se volverá à unidade, em que o separatismo de novo se unifica e o eu se funde no Todo, sem se destruir, como colaborador que se deu a si mesmo para a reconstrução do grande edifício do conhecimento. Nessa altura, ver-se-ão coincidir na profundidade, no mesmo cântico, que é a voz de Deus, as cindidas intuições pessoais [...]O objetivismo é, pois, filho de um preconceito: um fundamental instinto humano. Que valor terá ele quando transportado para a atmosfera rarefeita da concepção? É daí que procede essa orientação psico¬lógica de destruição. A distinção entre sujeito e obje¬to não é somente separatismo que distancia e cava insuperável abismo de incompreensão entre obser-vador e fenômeno, mas, em rigor, é também antago¬nismo, porque a observação parte, precisamente, da negação e da dúvida e, como garantia de verdade, toma precisamente a desconfiança, opondo-se à con¬fiança e à fé, isto é, assume-se uma atitude mental que fecha, a priori, todas as vias de comunicação. Com essa psicologia de agressão e negação, apenas se podem obter desruição conceptual e, diante do mistério, trevas e silêncio. (Pietro Ubaldi in Acesse Mística).
Una e simples é a verdade. Mas, para vê-la toda, em sua unidade e simplicidade, importa saber alcançar-lhe a altura; não se pode pretender trazê-la para baixo, para nosso nível humano, sem inquiná-la e falsificá-la. A verdade, a solução dos mistérios, a visão do pensamento de Deus não se conseguem mediante poderosas argumentações, por laboriosas pesquisas ou através de prepotência de lógica e de razão, mas seguindo as vias das ascensões do espírito, que são as da catarse mística.(P. Ubaldi - Ascese Mística).
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