Sonhei que me aproximava de uma cidade por uma estrada. Como ainda estava um pouco distante, era possível visualizar os contornos da mesma de uma forma global. Surpreendeu-me a harmonia do seu traçado, o equilíbrio de suas linhas, e a luminosidade que parecia dela emanar. Era como uma pedra preciosa incrustada sobre a superfície da Terra. Senti-me deslumbrado com aquele maravilhoso espetáculo visual. O conjunto era tão esplendoroso e perfeito que nada mais precisava ser acrescentado. Aflorou-me um sentimento eufórico de perfeição e harmonia. Aquilo que eu via ao longe resumia os mais belos sonhos e desejos da humanidade!
Vi-me, em seguida, dentro da cidade, em uma de suas ruas. O espetáculo era outro. Reinava a desarmonia, o ódio, o medo, o desespero, a separação. A atmosfera psíquica era de luta de todos contra todos. Suas ruas mais pareciam um labirinto de becos mal-iluminados onde os habitantes daquela cidade se escondiam como animais ferozes em suas tocas. O clima era de terror e insegurança e não havia nenhum sinal de bondade e de esperança.
Acordei com o som do grito aterrorizado que surgiu espontaneamente da minha garganta. Ficou-me um sentimento de terror impresso na minha memória. Foi como eu tivesse descido ao Inferno, como Dante, e conhecido o malévolo ambiente infernal.
O caráter paradoxal deste sonho deixou-me estupefato e comecei a procurar uma explicação racional para a simbologia do mesmo. De início, eu tinha um forte sentimento de que se tratava de uma simbologia ligada ao inconsciente coletivo e não uma construção onírica de meu inconsciente sobre fatos de meu cotidiano pessoal.
O normal seria procurar a explicação em Freud, ou melhor ainda em Jung que foi além de Freud nos temas de caráter numinoso. Mas, preferi Ubaldi que nos demonstrou que é possível encontrar explicação para qualquer fato desde que ele seja enquadrado dentro dos princípios básicos da filosofia monista:
O universo, repetimo-lo, é feito de esquemas de um único tipo e, por isso, encontramos a cada momento e em todo ponto o esquema maior no menor, embora adaptado aos casos particulares. Tudo ecoa e se repete no universo.(P. Ubaldi - Deus e Universo)
A primeira característica que sobressai neste sonho é o seu caráter dualista, isto é o contraste entre a primeira parte e a segunda. A visão do conjunto e a visão do detalhe. A visão do conjunto caracteriza-se pela harmonia, pela beleza que são partes do que chamamos bem. A outra parte do sonho, por oposição, representaria o mal. Desta forma o tema do sonho pode ser visto como um reflexo da teoria da queda. A polarização entre bem e mal forma uma unidade que é composta internamente de duas partes opostas e complementares, inseparáveis. Fica assim explicado de forma muito geral o tema do sonho. Mas isto não nos satisfaz é preciso ir além, individualizando-o em seus detalhes. Para isto recorremos a lei dos Grandes Números: Em um sistema, sob o ponto de vista microscópico, o comportamento dos componentes individuais é livre, mas, sob uma visão macroscópica, há um determinismo nos efeitos da interação entre os elementos singulares. Isto é: o comportamento caótico dos habitantes da cidade se compensam mutuamente, os entrechoques se equilibram, as diferenças se anulam de tal forma que geram um conjunto harmonioso. Ubaldi explica:
É assim que tudo, inclusive as forças negativas, são compelidas pelo sistema a cooperar na reconstrução positiva. Qual maior prova do que esta da apenas aparente corrupção do sistema e da sua substancial integridade permanente? Se em seu aspecto exterior o nosso universo parece degradado, entretanto, na sua estrutura íntima ele é são e poderoso, equilibrado e sábio, incorrupto e perfeito, mesmo que os seus elementos negativos, pareçam funcionar com resistência; que em última análise, agem como elementos positivos colaborando à sua maneira, com sua natureza invertida, efetivamente para o restabelecimento e triunfo do sistema. Eis a que função criadora está votado um erro que poderia se nos afigurar irreparável! A íntima e divina potência criadora não se extingue e tudo sabe criar de novo! Neste sentido, dizemos que em nosso universo a criação é contínua, isto é, Deus, no Seu aspecto imanente, está permanentemente em atividade na obra da Sua reconstrução. (P. Ubaldi - Deus e Universo). Em outro dos seus livros ele comenta: O bem possui, pois, grande aliado, o mal, cujas forças trabalham contra si mesmas e a favor do bem. De modo que, em resumo, os impulsos do mal se adicionam aos do bem e, então, sob as aparências de desordem e rebelião, tudo é ordem e obediência a Deus. Quando penetramos além da superfície das coisas e observamos mais profundamente, surge uma realidade diferente e maravilhosamente perfeita. Ficamos atônitos, então, em face da inesperada sabedoria da Lei. As resistências se transformam em impulsos construtivos, as dificuldades estimulam e os ignaros impulsos do mal gentilmente se prestam, à custa do próprio dano, a trabalhar pela vitória do princípio contrário. O mal é enquadrado a serviço do bem. (P. Ubaldi - Ascese Mística).
Fica assim fácil entender todo o simbolismo do sonho. A cidade vista de longe representa o processo empregado pela evolução para alcançar o Deus Transcendente. Embora ainda não tenha atingido este telefinalismo, o processo é perfeito devido a presença do Deus Imanente no Anti-Sistema conduzindo a evolução, um Ser perfeito só pode usar um processo perfeito, embora no detalhe possa parecer incoerente. Podemos assim, levar este exemplo para a nossa vida individual que nos parece sem sentido, dirigida pelo acaso e sem direção definida, mas, talvez, se a olharmos no seu conjunto ela tenha a imagem de uma cidade esplendorosa.
Anotações posteriores:
O homem normal não forma a idéia do universo de maravilhosos equilíbrios onde ele vive. Acredita que as harmonias da ordem divina se encontrem somente no alto, no chamado paraíso. Não. Aquela ordem, expressão de Deus, está em qualquer lugar, também no inferno terrestre. O homem a tem, pois, toda à sua volta, nas pequenas coisas do seu mundo, em meio às duras necessidades do contingente É verdade que a maioria humana é involuída, nada sabe, dessa ordem divina, da sua beleza, da riqueza que ela representa, da potência que confere o conhecê-la e o saber harmonizar-se com ela. A maioria involuída está, pois, mais atenta a violar continuamente essa ordem, o que redunda em seu prejuízo e não da ordem que, na sua perfeição, possui essa característica: a de saber tornar automaticamente a reconstituir-se, não obstante toda violação. Assim o homem está ativamente ocupado em procurar, sem descanso, somente o próprio dano e a própria dor. Mas isto é necessário para que ele, mesmo ficando livre, aprenda. E assim, na sabedoria divina, a desordem voluntária da inconsciência humana se transforma em uma mais alta ordem futura, e a dor, que deriva daquela desordem, se torna um meio de ascensão para uma felicidade mais completa. De certo, o homem atual não imagina que haja no universo ao alcance de sua mão uma riqueza, poder e felicidade imensas. Delas se acha afastado pela sua involução, que é ignorância; e para conhecer, é preciso evoluir, isto é, lutar e sofrer. A mente, que no aparente caos humano sabe recolocar cada coisa em seu lugar, verá um desenho maravilhoso de que ele faz parte, verá que tudo é lógico e ordenado para o bem, conquanto tristes possam ser as condições do indivíduo e do momento. O evoluído vê as metas de tudo e a íntima e tenaz reconstituição da ordem, a despeito da desordem vitoriosa, que está somente no exterior, na superfície, relativa e transitória. (P. Ubaldi - Problemas do Futuro)
É verdade que o mundo sub-atômico não funciona como o mundo macroscópico. Naquele plano mais profundo ele não é mais uma grande máquina dirigida por absoluto determinismo e os seus elementos aparecem independentes e livres. Aparecem, assim, segundo a nova física os "quanta" de ação. Entretanto, é possível dessa desordem submicroscópica obter uma ordem indiscutível no plano macroscópico que é vista pela física clássica. O que esta denominava leis, sabe-se hoje que na realidade são apenas regras estatísticas formuladas "a posteriori", como resultantes gerais de massa, por isto não ficam menos verdadeiras. Somente, não aparecem elas como férreo determinismo, mas como regularidades estatísticas que, se no plano macroscópico conservam o valor e a verdade de leis naturais, no plano submicroscópico repousam sobre o acaso ou sobre a liberdade dos atos elementares. (P. Ubaldi - Problemas do Futuro)
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