Embora seja desaconselhável polemizar sobre assuntos doutrinários de crenças firmemente estabelecidas como é o caso do Kardecismo, cuja doutrina contém revelações sublimes e conceitos inovadores no âmbito da fé cristã, não poderíamos deixar de tentar esclarecer alguns tópicos abordados no artigo Descartando o monismo publicado na edição nº 355 do Correio Fraterno do ABC de autoria do articulista Nazareno Tourinho.
O artigo inicia com seguinte afirmação: ...a nossa filosofia concebe DEUS como onipotente e detentor de vontade própria para reger a Vida do modo que lhe aprouver, segundo as leis que Ele mesmo criou e, por conseguinte, pode recriar, alterando seus mecanismos.
Realmente, ninguém de sã consciência negaria que um dos atributos da Divindade é a Onipotência mas isto não significa que Deus possa tudo impulsivamente: Não é verdade que Deus possa tudo caprichosamente. Há coisas que ele não pode fazer. Assim, por exemplo, Ele deve manter-se com as suas qualidades, coerentes com a Sua posição; não pode violar Sua Lei, porque renegaria a Si mesmo, nem contradizer-se. (P. Ubaldi - O Sistema)
Isto seria uma mudança de rumo, uma correção de rota, o que negaria outro atributo da Divindade: a Perfeição. O que realmente é Perfeito não precisa de reparos porque não há o que corrigir. Deus na sua suprema perfeição não poderia ter criado algo que necessitasse de correção. Se assim o fora ele não seria onisciente e portanto não conheceria o desenvolvimento futuro dos fenômenos. O que é volúvel é apenas a criatura humana. Deus respeita o livre arbítrio da criatura pois não criou um sistema escravagista, mas sim um sistema baseado no amor. É manifesto que o pressuposto básico do amor é a livre aceitação.
Ubaldi também considera os conceitos de sobrenatural e de milagre um absurdo pois neles está contida a idéia de limite e de seu superamento: “....conceitos inaplicáveis à Divindade. Esta é superior a qualquer prodígio e o exclui como exceção, como retorno ao que já está feito, como retoque ou arrependimento e, sobretudo, como vontade de desordem no equilíbrio da lei estabelecida.(P. Ubaldi - A Grande Síntese)”
A advertência citada no artigo e contida nas questões 17 e 18 d'O Livro dos Espíritos: ...“Queremos definir DEUS alem de tais considerações constitui uma inominável tolice, porque ainda não dispomos, no atual estágio evolutivo, de faculdades para tanto.” ... é verdadeira já que é impossível para uma mente pertencente ao relativo compreender o absoluto que está além dos nossas limitadas dimensões de espaço, tempo e consciência. Mas, é preciso recordar que a Lei da Evolução é soberana e por isto tudo evolui e se transforma. A transformação evolutiva não acontece somente no campo material mas também no mundo das idéias e dos conceitos. Assim a concepção que temos da Divindade evoluiu ao longo da história humana. Nossa idéia sobre Deus evoluiu desde do politeísmo, quando se concebia Deus como o sanguinário Moloque ou como os ferozes deuses das mais antigas civilizações, progredindo para a concepção Monoteísta dos Hebreus. Mesmo o monoteísmo evoluiu de um Deus vingativo (Jeová) para um Deus de Amor na percepção de Cristo. O que demonstra que se não podemos definir o Absoluto, podemos, no entanto, ter uma compreensão PROGRESSIVA da Divindade em virtude da onipresente atuação da Lei da Evolução.
Kardec redigiu as respostas das questões 17 e 18 em meados do século XIX, de lá para cá o formidável avanço da ciência, a disseminação da educação e a universalização da informação fez o nível evolutivo da humanidade avançar muitos passos à frente. Hoje, as mentes mais evoluídas rejeitam a concepção de um Deus antropomórfico e procuram uma noção da Divindade mais condizente com o nosso atual estágio evolutivo. O articulista ao afirmar: “Não há, conseqüentemente, espaço na filosofia espírita para o monismo, que no fundo, lá bem no fundo, na sua raiz histórica e cultural, não passa de um pensamento ateu, ou no mínimo agnóstico. Esta é que é a verdade, e o resto se resume no jogo das palavras, do qual se aproveitam Os sofistas responsáveis pelo descaminho ideológico de ponderável parcela do movimento espírita brasileiro....” certamente não conhece totalmente a vasta obra de Ubaldi
O Monismo é um novo e revolucionário ponto de vista sobre a natureza de Deus. Ubaldi assim se expressa: “...E o conceito é este: como do politeísmo passasteis ao monoteísmo, isto é, à fé num só Deus (mas sempre antropomórfico, pois realiza uma criação fora de si), agora passais ao monismo, isto é, ao conceito de um Deus que É a criação.” (.....)Do politeísmo, ao monoteísmo e ao monismo, dilata-se vossa concepção de Divindade. (P. Ubaldi – A Grande Síntese). Como esta nova idéia abalou os dogmas católicos, Ubaldi foi condenado pela Congregação do Santo Ofício em 1939 e proibida a leitura de seus livros, A Grande Síntese e Ascese Mística, pelos católicos.
É estranha e perturbadora esta idéia de um Deus que É a criação. Parece até uma invenção da soberbia humana. Mas se a encararmos sob o ponto de cientifico-filosófico poderemos encontrar uma explicação lógica para o Monismo.
Partindo-se do indiscutível axioma de que Deus é infinito, idéia aceita sem contestação por qualquer credo filosófico ou religioso, chega-se a conclusão irrefutável de que nada pode existir fora dele: “... porque Deus é necessariamente Tudo. Se ele não fosse tal, se algo pudesse existir fora e além dele, Deus não seria mais Deus. Não podia portanto acontecer senão uma criação no seio de Deus, interior, tirada dele próprio, que é o Tudo, dado que nada pode existir que não seja Deus. (P. Ubaldi – Cristo)” Para que não sobeje dúvidas sobre a filosofia ubaldiana recorremos ao testemunho de um eminente espírita brasileiro: Carlos Torres Pastorino que na introdução ao livro O Sistema, entre muitas coisas disse: “Perguntam-me alguns confrades, como posso aceitar a teoria de Pietro Ubaldi, sendo, como sou, espírita adepto de Allan Kardec. Confesso não ver nenhuma contradição entre as duas teorias. Para quem lê Kardec superficialmente, detendo-se nas palavras impressas, a teoria de Pietro Ubaldi pode parecer "herética". Mas aos que lêem o mestre penetrando as entrelinhas das respostas dos espíritos, tão sábias e profundas, nada lhes parece de contraditório.” Neste prefácio ele esclarece vários pontos que são aparentemente contraditórios entre as duas doutrinas. Não cabe reproduzir aqui todo o texto desta introdução pelo fato de ser muito extensa. Assim, recomendamos a leitura do livro O Sistema.
Há muito mais pontos de concordância entre as duas teorias do que de discordância. A teoria da reencarnação, a Lei da Evolução, o Carma e muito outros temas são exemplos patentes do parentesco entre os dois sistemas. Muito coisa há que nos une e pouquíssimas as que nos separam. Se este texto ferir a suscetibilidade de alguém pedimos escusas. Nunca foi a nossa intenção polemizar pois cremos que ...o sistema de querer vencer polemizando, ou seja, usando as palavras e os argumentos como armas e projéteis, para esmagar o inimigo, é o sistema do homem primitivo, que instintivamente ainda adota os métodos da guerra, para ter razão contra os outros. Nos planos mais elevados, não é o vencedor, o mais forte em dialética mas o que, usando da mais simples sinceridade, convence porque demonstra que descobriu desapaixonadamente maiores verdades e sabe dar as provas necessárias. (P. Ubaldi – O Sistema)